Vou renegociar contratos de gás com Brasil, diz virtual presidente da Bolívia

Vou renegociar contratos de gás com Brasil, diz virtual presidente da Bolívia

Virtual ganhador das eleições na Bolívia, Luis Arce, 57, diz que quer renegociar os contratos de gás entre seu país e o Brasil, pois o governo brasileiro não deveria ter firmado acordos com uma gestão que não foi eleita de modo democrático –referindo-se à atual presidente, Jeanine Añez.


Ainda que as projeções o coloquem como vencedor, Arce ainda espera os dados oficiais do Tribunal Supremo Eleitoral para iniciar a transição. A data da posse ainda será definida, mas deve ocorrer na primeira ou na segunda semana de novembro.


Ele concedeu a entrevista a seguir à reportagem, em seu comitê de campanha, em La Paz.


PERGUNTA - O senhor disse que quer ter relações pragmáticas com o Brasil, uma vez que há diferenças ideológicas entre o MAS e o presidente Jair Bolsonaro. Como isso funcionaria na prática?


LUIS ARCE - Os mecanismos de relacionamento econômico entre os países ocorrem apesar dos governos - portanto, nesse ponto, as diferenças não me preocupam. A questão que temos de resolver com o Brasil é o gás. Não estamos contentes com a forma como o governo de Jeanine Añez negociou a questão do gás com o Brasil.


Principalmente porque não era uma atribuição de Añez. O governo brasileiro deve entender, uma vez que apoiou este governo "de facto", que falta legitimidade a esse acordo. Queremos revisar os atuais contratos e fazer isso do ponto de vista de uma relação de dois governos que foram eleitos de modo democrático.


P - Qual vai ser o papel do ex-presidente Evo Morales no seu governo? Ele terá algum cargo?


LA - Não terá cargo. Não sei quando vai vir ou se quer vir agora, porque tem muitos problemas judiciais aqui aos quais terá de responder. Só o que digo é que a nenhum boliviano haverá impedimento de voltar à Bolívia.


P - Evo enfrenta processos, e o senhor também. Como os enfrentará?


LA - Com calma e confiança de que a Justiça agirá de modo correto. Este atual governo conseguiu manipular a Justiça de acordo com seu interesse político, como a direita costuma fazer. Assim, eu agora tenho cinco processos a responder [são acusações de pagamento, enquanto ministro, por softwares nunca entregues; de desvio de fundos do Fundo Indígena; de transferência de dinheiro do Banco Central a uma conta desconhecida; e de má administração dos fundos da previdência]. Vou responder e espero que a Justiça atue como deve atuar, com independência.


P - O senhor já conversou com Jeanine Añez? Como imagina essa transição?


LA - Não falei. Até porque somos respeitosos com relação ao trabalho do Tribunal Eleitoral e vamos esperar o resultado final para abordar o tema da transição. Espero que eles atuem de modo responsável, apresentando o estado do país e seus problemas, antes que eu tome posse.


P - A presidente felicitou o MAS antes do resultado final. E o ex-ministro de Governo Arturo Murillo disse que vai sair do país. Por que crê que estão atuando desta maneira?


LA - Não tenho a menor dúvida de que vão sair do país assim que possam porque sabem o que fizeram, conhecem os abusos e as mortes que causaram. E que serão cobrados pela Justiça. Agora, os processos por violar a Constituição, por cometer abusos de direitos humanos e repressão já estão abertos. É a Justiça que deve resolver o que acontecerá com eles.
Estávamos numa ditadura e agora estamos voltando a uma democracia. Creio que vamos saber de muito mais coisas erradas que fizeram, porque vai acabar a censura. Por isso, estão dando essas declarações e indicando que vão embora.


P - É certo que houve limitação à liberdade de imprensa no governo de Añez, mas durante os anos de Evo tampouco foi fácil exercer o jornalismo livremente. O próprio ex-presidente falou na semana passada que o jornalismo era "cúmplice do golpe" e que era preciso "fazer algo". O senhor garante que haverá liberdade de expressão em seu governo?


LA - Sim, eu discordo desse critério do ex-presidente Morales. Minha posição é diferente. Não haverá nenhum tipo de limitação à liberdade de expressão no meu governo.


P - Qual será sua primeira medida econômica ao assumir?


LA - A Bolívia vai precisar de financiamento. Seria via emissão monetária ou empréstimo? Nenhum dos dois. Este governo atual fez essas duas coisas, imprimiram moeda, endividaram o país e não resolveram nenhum problema econômico ou social. A herança que nos deixarão é muito ruim. Nós vamos reativar a demanda interna. Esse sempre foi o motor da economia boliviana. E vamos voltar a pagar o bônus contra a fome, que foi interrompido. É a primeira coisa que faremos, pagar os bônus que deixaram de pagar - e sem demagogia.


P - Com que dinheiro?


LA - Nós já tínhamos financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento para isso. Só que a sra. Añez não o usou, ela preferiu gastar com campanhas publicitárias e eleitorais. Nós vamos direcionar esse dinheiro de volta para o povo.


P - A vitória do MAS na Bolívia está sendo interpretada como um sinal de "virada" da esquerda na região. O senhor se vê como um líder da esquerda da América Latina?


LA - Não, meu foco é resolver os problemas deste país. Essa é a minha meta, e o desafio já é bastante grande. Os bolivianos não tinham escolhido sair da esquerda e tomar o rumo da direita. A direita chegou via golpe de estado. Nesta eleição, vimos que os bolivianos ainda querem a esquerda. É a esse mandato que vou responder.


P - O senhor falou de uma autocrítica necessária ao MAS. Crê que a busca de Evo Morales por um quarto mandato foi um erro?


LA - Sim, e ele mesmo está de acordo com isso.


P - E o que mais faz parte dessa autocrítica necessária?


LA - É a questão da Justiça. Devemos dar mais condições para que a Justiça seja mais independente. E outra coisa é estender mais pontes para que distintas organizações sociais possam propor medidas para o governo. Ampliar esse leque e facilitar o acesso.


P - O senhor tem perfil muito distinto de seu vice, David Choquehuanca. Como é a relação entre os senhores?


LA - Conheço David desde 2006, quando ambos éramos ministros [Choquehuanca foi chanceler]. E de todos os ministros era com quem me dava melhor. O fato de termos origens diferentes não afeta a formação de nossa chapa. Porque nossas convicções são as mesmas.


P - A Bolívia não enfrenta bem a pandemia. Qual a sua estratégia para melhorar esse desempenho?


LA - Fazemos muito poucos testes. Os números oficiais nem de perto mostram o tamanho do problema. Temos de fazer mais testes para desenhar uma nova política. Uma coisa que quero fazer é voltar a convidar os médicos cubanos que foram expulsos por Añez, além de fazer acordos de colaborações que foram ignorados por questões ideológicas, com a China, com a Rússia, para que nos ajudem com isso.


P - O senhor tem descansado nos últimos dias? O que comeu no café da manhã hoje, por exemplo?


LA - Eu sigo muito a minha rotina. Só saí dela no domingo por conta da apuração, saí daqui [da sede de campanha] às 3h. Mas hoje já dormi bem. Meu café da manhã é sempre o mesmo, tomo um "shot" de bicarbonato com limão, para alcalinizar o corpo. Depois, suco de graviola, frutas, café e bolachas. Todos os dias.


RAIO-X


Luis Arce, 57 Formado em economia na Bolívia e com mestrado na Universidade de Warwick, no Reino Unido, trabalhou no Banco Central e deu aulas na Universidad Franz Tamayo. Foi professor convidado na Universidade de Buenos Aires, na Argentina, e em Harvard e Columbia, nos EUA. Em 2006, foi nomeado ministro da Economia no governo de Evo Morales.

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